Histórias dispostas na obra lançada fazem parte do diário que Sílvio Bulhões mantinha sobre os pais
Mariana Lima – jornalista com fotos de Renner Boldrino
“Tia, eu conversei com o filho de um cangaceiro de verdade!”. A animação de Ícaro, 9 anos, ao sair da sala Siriguela na 10ª Bienal Internacional do Livro de Alagoas na noite da última quinta-feira (17) era uma prova de que a mística provocada pelo cangaço no sertão nordestino segue firme e alcançando novas gerações. Natural de Santana do Ipanema, onde histórias sobre o cangaço fazem parte da cultura local, o garoto se referia ao conterrâneo Sílvio Hermano de Bulhões, economista e ex-professor que acabara de apresentar a história da sua família e seu livro Memórias e reflexões de um filho dos cangaceiros Corisco e Dadá em palestra de mesmo nome.
Prestes a completar 88 anos, Sílvio Bulhões é um dos autores mais velhos a lançar na Bienal. O livro foi quase um incidente, descoberto pelo amigo e editor José Malta, da SWA Instituto, editora pela qual é publicado. Seu objetivo era colocar em um diário as histórias sobre seus pais e irmãs para que as futuras gerações da família pudessem compartilhar das mesmas conversas, amor e admiração pelos sacrifícios que os pais Corisco e Dadá fizeram para garantir o melhor cuidado aos três filhos, dos sete que tiveram, que sobreviveram ao parto nas condições difíceis da caatinga.
“Eu fui lembrando as minhas histórias e escrevendo. Da emoção que foi conhecer meu pai, saber da história dele, conhecer a minha mãe… Quando eu fui lá na casa dela, passei o mês de junho todinho conversando com ela, ouvindo as histórias dela, do meu pai, dos tempos de cangaço. Eu botava a minha cama do lado da dela na hora de ir dormir e a gente ficava conversando até o dia amanhecer”, revelou Sílvio.
Apesar de Corisco ter sido assassinado em emboscada em 1940, Dadá escapou e refez a vida na Bahia, onde faleceu aos 78 anos, em 1994.
Memórias no papel
Na Bienal, Sílvio contava com o auxílio dos filhos Sira e Cristino, batizado em homenagem a Corisco, para atender o público e se orientar no espaço, já que perdeu a visão em decorrência da diabetes. Foi Sérgia, a outra filha, batizada em homenagem a Dadá, quem fez o contato com Malta para mostrar o material que ajudava o pai a registrar, na forma de diário, e que acabou virando livro.
“Um belo dia meu pai mostrou-me um escrito de suas memórias. Mostrei-me interessada e desse dia em diante, sempre que escrevia algo novo, me mostrava. Quando papai perdeu parcialmente a visão, os escritos estavam na metade e me envolvi um pouco mais, ouvindo-o e digitando os capítulos em letras grandes para ele analisar. Com a perda total da visão, passei a ter o privilégio de concluir este trabalho que marca minha vida”, relatou Sérgia, na orelha do livro.
Caçula da família, Cristino não conheceu pessoalmente a avó Dadá, apenas falou com ela ao telefone. Após a palestra de lançamento, acompanhou o pai ao estande da SWA para continuar a conversa com o público, curioso sobre as histórias que o filho de cangaceiros teria para contar. Curiosidade e espanto que Cristino não compartilha.
“Eu não tenho como te dizer a minha reação quando descobri que meus avós eram os famosos cangaceiros Corisco e Dadá porque eu sempre ouvia isso do meu pai, ele contava as histórias do passado, do pai, eu falei com Dadá por telefone, então sempre foi algo normal para mim. As histórias nesse livro são as histórias que eu cresci ouvindo, o profundo amor e admiração que meu pai tem pelo pai dele. Não é ‘o cangaceiro’, nunca foi, é o pai do meu pai”, explicou Cristino, em uma simplicidade pungente.
Gratidão aos pais
Na sua infância em Santana do Ipanema, sendo criado pelo padre Bulhões e sua irmã, Maria Angélica Bulhões (Liquinha), a identidade dos pais de Sílvio não era exatamente um segredo. Talvez por medo ou respeito, as pessoas sempre falavam de seus pais de forma positiva e ele nunca se sentiu agredido. Ele guardou as roupinhas com as quais foi entregue ao padre e a carta enviada por Corisco apresentando o menino como seu filho.
“Eu tenho um pai e uma mãe que tenho orgulho deles, que souberam ser pai e mãe e eu retribuo o máximo que posso. Cometeram erros? Cometeram, jamais julgarei um erro que meu pai fez, cabe isso a Deus, mas meu pai e minha mãe vivem sempre em meu coração. Eu tenho tanto orgulho do meu pai e da minha mãe que me sinto feliz quando falo deles”, afirmou Sílvio Bulhões.
E a alegria é ouvida de longe quando ele ri alto ao escutar que Dadá foi a única pessoa que domou o Diabo Loiro (apelido de Corisco). Ou quando uma leitora mostra a foto da contracapa do livro e diz que ficou emocionada ao saber que Corisco abraçava o enxoval do bebê, roupinhas que o padre Bulhões guardou e Sílvio conserva até hoje.
A dor, no entanto, vem quando relembra sua luta, já adulto, pelo sepultamento dos restos mortais de seu pai – o túmulo de Corisco foi violado dias após o enterro, a cabeça e o braço direito cortado e enviados para Museu Nina Rodrigues, onde ficou exposto por décadas com cabeças de outros cangaceiros. No livro, ele sua campanha para recuperar os restos mortais de seu pai em 1969 e a decisão que o levou a cremá-lo para evitar que voltasse a ser exposto no futuro.
As cinzas foram jogadas em uma praia de Maceió, unindo mar e sertão, como profetizou um dia Antônio Conselheiro: “Sei que tem gente que chama cangaceiro de bandido e eu sou obrigado a respeitar, se a sociedade diz assim, que seja! Mas ele é meu pai, meu amor por ele é fantástico. Esse livro é meu testemunho disso, do amor que tenho por meu pai e minha mãe, Corisco e Dadá”, declarou Sílvio.