Em entrevista, Kabengele Munanga reforçou a importância da luta antirracista e de uma educação que valorize diferenças
Elaine Rodrigues – jornalista com fotos de Renner Boldrino
Em 1975, quando chegou ao Brasil para concluir o doutorado na Universidade de São Paulo (USP), o professor e antropólogo Kabengele Munanga encontrou uma sociedade que não falava de racismo. No entanto, o racismo estava em todo lugar, o que fez com que ele começasse o enfrentamento, por meio de estudos e pesquisas voltadas para a questão racial. O professor acredita que assumir a existência do problema é o primeiro passo para derrubar o mito da democracia racial e lutar contra o preconceito.
Assim, Munanga atuou em defesa da Lei de Cotas para regulamentar o ingresso de estudantes negros em instituições públicas de ensino e, hoje, mais de dez anos depois de sua implementação, acredita que ela contribui na diversidade do quadro de docentes nas universidades. Ele também defende as leis que determinam o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana nas escolas, mas afirma que é preciso ter fiscalização para que elas sejam cumpridas.
Quase 50 anos depois da sua chegada ao Brasil, o professor enxerga o avanço, mas ressalta que ainda é preciso lutar pela igualdade racial e um dos caminhos é uma educação antirracista. Presente na 10ª Bienal Internacional do Livro de Alagoas, Kabengele Munanga conversou sobre esses e outros temas, conforme a entrevista a seguir:
Elaine Rodrigues – Qual a sua percepção sobre o preconceito racial no Brasil?
Kabengele Munanga – O preconceito existe. Como dizia Albert Einstein, é mais fácil quebrar um átomo do que quebrar um preconceito. O preconceito existe na sociedade, mas a única mudança que há é uma consciência que está crescendo. A população brasileira está se conscientizando que é uma sociedade racista que precisa lutar contra esse racismo. Eu estou aqui há 48 anos, quando cheguei ao Brasil, em 75, não se falava no racismo. Não se falava mesmo. Só nos livros, na academia, em Florestan Fernandes, e em tantos outros. Não se falava, a imprensa não tocava na questão. Mas hoje, em tudo quanto é lugar se fala no racismo. Quer dizer, a consciência da sociedade brasileira cresceu, mas o racismo ainda existe, ainda continua a criar vítimas de uma maneira ou de outra.
ER – Como o conceito de negritude ajuda no combate ao racismo?
KM – As pessoas têm que assumir seus corpos, assumir sua identidade, assumir seu corpo negro, os homossexuais se assumirem… Daí que vem o conceito de negritude, aceitar seu corpo, amar seu corpo, se olhar no espelho e dizer eu também sou bonito, eu também sou inteligente, como também pode dizer que olha, aquele negro é feio, como pode dizer que aquele branco é feio. Então, a negritude é o fato de se assumir como negro. Não, simplesmente, pela cor da pele, mas com a consciência do que os negros sofreram na história da humanidade. Sofreram durante a escravidão, a colonização, depois da abolição da escravatura continuam a sofrer e a serem vítimas por causa da cor da pele. Você não luta contra o racismo sem se assumir. Daí a ideia da negritude que na verdade é uma identidade. Assumir essa identidade que começa pelo corpo, antes de atingir espiritualmente a inteligência.
ER – E a educação, qual o papel dela na luta contra o racismo?
KM – A educação é importante porque é através da educação que se cria todos os preconceitos, que se cria indivíduos racistas, machistas, sexistas, tudo passa pela educação. Então, a educação é o caminho para desconstruir os monstros que a própria educação criou. Mas a gente precisa ter outra educação. Uma educação antirracista, uma educação que valoriza as diferenças, que valoriza a diversidade, que constitui a riqueza coletiva da humanidade.
ER – Na sua visão, o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana tem causado algum impacto para reduzir o preconceito racial no Brasil?
KM – O Brasil fez um grande progresso. As leis nº 10.639/2003 e nº 11.645/2008 são leis que tornam obrigatório o ensino da história, da cultura da África, dos negros no Brasil, dos negros da diáspora, dos povos originários. Precisava fazer uma lei para fugir do mito da democracia racial e a democracia racial dizia que não somos racistas. Como você vai lutar contra uma coisa que a sociedade não assume? Então, precisaram fazer as leis: todos os educadores vão ser obrigados a ensinar isso e aquilo. E isso passa pela lei, sem a lei não funciona. As leis são importantes, mas as leis têm que funcionar. Não podem ser letras mortas no papel, que não funcionam. Então, quando se cria uma lei, as leis precisam ser monitoradas, para saber se funcionam ou não funcionam. Se perceber que os municípios não estão respeitando a [Lei nº] 10.639, não estão ensinando a história do negro, precisa saber por que e o que está faltando para que essas leis possam funcionar.
ER – Qual a sua opinião sobre a Lei de Cotas (Lei nº 12.711/2012) para o ingresso em instituições públicas, além de outras ações afirmativas de combate ao racismo?
KM – Para você lutar contra o problema da sociedade, tem três caminhos clássicos: leis que funcionem, é um caminho; segundo caminho é a educação; terceiro caminho são políticas públicas de inclusão, sem políticas públicas de inclusão, fica só um discurso antirracista, mas o racismo continua. Tem que ter políticas. As cotas são políticas de inclusão. Hoje já temos o resultado das cotas nas universidades que as adotaram. Hoje já temos até professores negras e negros, em algumas universidades, que passaram pelas cotas. Então, as cotas não são paliativas, como pensavam algumas pessoas quando esse debate nasceu. As cotas são políticas de inclusão social dos negros.
ER – As denúncias contra o racismo aumentaram. A exposição colabora para a conscientização da sociedade de que o racismo existe e precisa ser combatido no Brasil?
KM – O papel da imprensa é importante. Quando mataram George Floyd, nos Estados Unidos, se a imprensa não mostrasse aquelas imagens, a tortura, não iria sensibilizar a sociedade. Se tivesse só um jornalista sem as imagens, o mundo não iria ser sensibilizado. Então, a imprensa hoje, com a tecnologia, com as imagens, é muito importante para conscientizar a sociedade e para mostrar que o discurso sobre o racismo não é uma mentira. Hoje tem imagem, não dá para negar.
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