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“A encruzilhada é a cura”, dispara Sidnei Nogueira, em entrevista exclusiva

Um dos maiores pensadores contemporâneos sobre negritude no Brasil, escritor também compartilhou memórias, da ruptura na academia e sobre futuros lançamentos

Jamerson Soares – jornalista com fotos de Renner Boldrino

O pesquisador Sidnei Nogueira em entrevista ao jornalista Jamerson Santos

Com um olhar tateando os espaços, uma voz de aparente deslumbramento, como quem sabe que nunca anda só neste mundo, o professor e pesquisador Sidnei Barro Nogueira, 54, entrou no Centro Cultural e de Exposições Ruth Cardoso e palestrou durante a 10ª Bienal Internacional do Livro de Alagoas. Na ocasião, falou sobre sua trajetória de vida enquanto homem preto homossexual e babalorixá e do processo criativo de seu novo livro, Coisas do Povo do Santo.

Mas não foi apenas isso. Numa conversa exclusiva para a Assessoria de Comunicação do evento, Nogueira levantou diversos outros pontos, inclusive sobre seu distanciamento da academia. Enquanto conversava com a reportagem, Sidnei olhava com orgulho suas ilustres acompanhantes: a mãe, o assessor, além de familiares e amigos. Ele nunca anda só.

“Como diz Neusa Souza Santos: ser negro no Brasil é um exercício, é um gerúndio, a gente está a todo momento se tornando, todo mundo nasce branco, heteronormativo. Embora filho de uma Ialorixá, eu demorei para acessar os sentidos de uma epistemologia ancestral, e quando a gente acessa, a gente se reconhece. Então, gosto de dizer que sou filho de tal pessoa, sou resultado de tal história, passei por isso. Nós somos a sociedade do esquecimento, ela ama esquecer. Se a sociedade ama esquecer ela banaliza tudo. Isso é perigoso. Então estou muito atravessado por essa história”, contou.

Em sua fala, é perceptível que ele carrega dores e celebrações antigas, ancestrais, que atravessam sua história de vida até hoje. Filho de uma alagoana de Palmeira dos Índios, cartomante e empregada doméstica, e de um pai analfabeto e trabalhador na área de construção civil, o professor participou de diversas pesquisas no campo da semântica iorubá, letramento racial, e demais assuntos referentes às religiões de matriz africana.

Sidnei Nogueira com seu novo livro, Coisas do Povo do Santo (Foto: Renner Boldrino)

Nogueira lembrou que veio a Alagoas, especialmente em Palmeira, para resgatar memórias de sua ancestralidade. Visitou a antiga casa de sua mãe e destacou o seu real papel enquanto escritor:

“Sou da memória, não quero me confundir, quero continuar sendo escritor, filósofo, pesquisador, mas também quero ser filho da dona Joésia, do Plácido, continuar com minhas origens fincadas nessa história de superação. Muito importante porque mamãe é daqui, eu vim criança e não tenho muitas memórias. Depois nunca mais vim. É um retorno à minha ancestralidade. Vivo uma ética da memória, trago sempre meu pai, que já retornou a massa de origem, porque não quero que ele morra, não quero esquecer da minha história”, refletiu.

Ruptura na academia

O escritor enfrentou dificuldades na época da produção de seu mestrado e doutorado, porém nunca desistiu de romper com as linhas padronizadas e enfileiradas da academia. Para ele, os grandes pensadores do mundo romperam com essa instituição e que ela sempre foi dominada pela branquitude.

“É um espaço hermético, que não dialoga com a sociedade. As pesquisas são sobre o outro, não com o outro. Sobre quem ele é. A academia fez isso conosco desde Nina Rodrigues. A academia instituiu a humanidade e continua fazendo, e não mudou com essa lei de cotas, não mudou”, disse Nogueira.

Ainda segundo Sidnei, vários pesquisadores pretos têm feito convites a ele para dar suporte em suas pesquisas, como uma forma de blindar a discriminação racial na universidade e no fazer acadêmico.

“Recebo vários convites com pesquisas de epistemologia, africanidades, letramento racial. Me chamam para blindar um pouco o racismo que esses pesquisadores negros sofrem. Porque quando eles falam que vão utilizar nas pesquisas autores como Neusa Souza, Abdias do Nascimento, Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro, o orientador diz que não conhece e que não vai ler. Dizem: ah, agora você quer que eu estude novamente. E sim, eu reafirmo que: sim, você vai estudar porque a vida toda estudamos os seus autores brancos, e agora você vai estudar autores pretos sim”, afirmou, com voz mais firme e assertiva.

Sidnei contou também que trabalha na linguística Iorubá, semântica, cantos de terreiro, fonologia, e que muitas vezes ouvia que ele deveria deixar o babalorixá no lado de fora da academia, diziam que ele se perdia quando misturava cultura negra com ciência.

“Os jovens pretos que estão ingressando não conseguem ir até o fim porque é muito doloroso. Acham o tema desqualificado, porque a ciência não acredita na escrevivência. Quando o negro consegue virar mestre, doutor, os seus títulos, ele muito melhor que o branco. Eu rompi com a academia porque eu sei o esforço que eu tive que fazer durante sete anos de pesquisa. Lamentavelmente a gente se vê obrigado a romper com a academia porque é um lugar hermético, segue um único padrão. Ela, inclusive, não considera os nossos temas como temas que podem ser tratados como ciência”, lamentou.

Ele disse também que teve que abrir mão de diversas discussões sobre negritude no mestrado e no doutorado para conseguir fazer uma ciência considerada aceita pelo mundo acadêmico. “Nós sabemos que essa ciência quer uma linguagem rebuscada, não quer ser compreendida. Então, hoje escrevo para o leitor comum, escrevo como falo, eu quero ser lido, porque preciso ser lido, não escrevo para grandes nomes da ciência. Escrevo para alunos do ensino médio, por exemplo. Meu livro é pra ser lido por todo mundo”.

“A encruzilhada é a cura”

Considerado como um dos grandes pensadores pretos contemporâneos do Brasil, Sidnei Nogueira alcançou a marca de 27 mil exemplares do livro Intolerância Religiosa, lançado em 2020, e indicado do Prêmio Jabuti no ano seguinte.

O pesquisador Sidnei Nogueira na Bienal 2023

Mas ele continua alçando voos que já superaram expectativas. “Muitos acham pouca coisa, mas é muito exemplar vendido já que sou um homem preto. É difícil ter esse destaque em um mundo branco e eurocêntrico. Estou interessado em produzir”, frisou Sidnei.

Em quase toda a conversa, o babalorixá, que estava rodeado de colares da sua religião e vestido de uma radiante roupa branca, citou a frase: “a encruzilhada é a cura” repetidas vezes. Questionado sobre o significado do termo, Sidnei se emocionou ao comentar sobre a polarização política no país desde 2016, o adoecimento coletivo e o deslocamento do sentido de religião.

“Hoje o Brasil está preso em uma linha reta, direita, esquerda, gordo e magro, preto e branco, a gente tá numa linha reta, isso é resultado de um discurso da extrema direita. Então a encruzilhada entre no meio disso tudo e expressa que se a gente pega uma linha reta e cruza essa linha, se a gente tinha duas possibilidades, ao cruzar essa linha, obtemos quatro possibilidades, ou seja, o dobro. A linha reta é estéril, não produz. Por isso a encruzilhada é cura, porque é nesse cruzamento que abrimos mais possibilidades de sanar o adoecimento social”, explicou.

Ao fim da entrevista, Sidnei Nogueira enfatizou a discussão hoje em dia não só sobre religião, é também sobre a erosão da democracia. “Teologicamente a religião deve promover o conforto, a união, o bem e a cura, mas hoje o discurso religioso tem sido utilizado para produzir ódio. Então a gente precisa resgatar a religião e devolver para o lugar dela. União, paz, saúde e ela não está mais no seu lugar. As pessoas estão muito acomodadas com uma religião que prega o ódio, que não é a minha, preciso dizer que não é a minha”, concluiu.

Novidades

Durante a entrevista, o pesquisador também revelou que vai publicar em setembro um livro infantil chamado “A Menina dos Cabelos D’água”, que fala sobre uma menina preta de Iemanjá que tem superpoderes, como cabelos de água.

“Ela não consegue trançar o cabelo e sofre bullying. Outro livro que vou lançar, mas só no ano que vem, será o ‘Pergunta Pra Mim’. Este livro vai falar um pouco sobre o sentido de perguntar as coisas para pessoas específicas. Por exemplo, se você quer saber porquê eu mato bode ou sobre a homossexualidade, ou porquê sou preto, pergunta para mim, não pergunta para o padre ou para pessoas brancas”, destacou o pesquisador.

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