Ativista elogiou a iniciativa da Ufal em organizar uma Bienal gratuita, com programação diversa e comprometido em formar novos leitores
Mariana Lima – jornalista com fotos de Mitchel Leonardo
O Teatro Gustavo Leite irrompeu em aplausos quando Ailton Krenak surgiu no palco, todos os 1.200 lugares ocupados por um público ávido para a grande atração do penúltimo dia da 10ª Bienal Internacional do Livro de Alagoas. O filósofo, professor, pensador e ativista histórico da causa indígena no Brasil esteve em Maceió para convidar as pessoas a pensarem nossa realidade a partir de onde vivemos, mas também a partir do sentido de humanidade.
Saudando os primos alagoanos Xucuru Kariri, Kariri Xocó e Wassu Cocal, Krenak puxou a conversa a partir de seu tríptico mais recente – Ideias para adiar o fim do mundo (2019), A vida não é útil (2020) e Futuro Ancestral (2022) –, contando ao público que tais ensaios foram resultado de uma reflexão sobre nós. Todos nós.
“Não os indígenas, os negros, brancos, amarelos, azuis, mas nós enquanto espécie. Não somos unânimes enquanto humanidade, somos fraturados, temos muitas divisões, a maior delas é a desigualdade. Por isso, a urgência de novos paradigmas para a vida, a ideia de utilidade da vida é a ânsia do consumo. Do jeito que o mundo está, nós não somos cidadãos, somos consumidores. Consumidores inclusive danando a terra, consumindo o equivalente a uma Terra e meia somente até agora, o começo de agosto”, instigou.
A diferença entre terra e Terra é sutil no discurso de Ailton Krenak, pois ele assume a dificuldade de chamar a Terra de planeta, já que foi ensinado a chamá-la de mãe. Lembrou, ainda, as diferentes culturas indígenas do continente americano que compartilham ideia similar, de pisar com cuidado na terra para não machucar a mãe. Por isso, seu livro e suas trocas com o público são justamente ideias para adiar o fim do mundo, provocações para estimular a reflexão e não um manual pronto para pessoas que esperam respostas simples.
A “grande cultura ocidental”
Enquanto filósofo, questionar faz parte da formação acadêmica de Ailton Krenak, por isso ele instigou o público – o maior que ele já teve em uma palestra até hoje – a se perguntar se já eles já pararam para pensar sobre aquilo que se convencionou chamar de “grande cultura ocidental”: a ideia constante de desenvolvimento e progresso, do capitalismo e sua necropolítica que decidiu o tempo-dinheiro e embala as pessoas enquanto produto.
“Eu faço uma crítica radical a esse modo de habitar o mundo que todos nós – chineses, brasileiros, africanos – fomos obrigados a abraçar que é o parâmetro branco europeu. Isso está por todo o lugar, as crianças são capturadas para essa ideia desde a sala de aula. Isso é de um egoísmo tão grande. Ao invés de sermos Homo sapiens, nós seríamos o Humus sapiens se a natureza resolvesse se livrar da gente”, provocou Krenak diante de 1.200 cabeças assentindo em concordância, capturadas pela voz mansa e ao mesmo tempo firme do ancião.
Enquanto capilaridade do organismo vivo da Terra, é um erro dos seres humanos pensar que são a espécie mais importante porque domesticaram e caçaram as outras. Uma ilusão que pode levar a um abismo cognitivo. “Como um povo tão colorido como nós somos caiu num conto como esse, que se pode dizer um conto do vigário?”, perguntou, provocando risos da plateia e rindo junto ao perceber que sua crítica ao uso das religiões para colonização foi captada pelo público.
Viver bem não é ter coisas ou produzir constantemente uma novidade, defendeu. Até porque a novidade do momento é a substituição dos humanos por robôs e inteligência artificial para o trabalho e até convivência. “Estamos falando de espaços e atividades que eram coletivos, de encontro de pessoas, interação, locais de trocas e de afetos. Hoje estamos com a cara enfiada no celular, apartados da terra, produzindo o tempo todo sem pensar. Já fomos muito mais interessantes que isso”, apontou o indígena.
Esperança radical
O homem que foi menino às margens do Rio Doce, em Minas Gerais, cresceu com o Brasil buscando a democracia, sendo ativo na Assembleia Constituinte em prol de leis e garantia da presença dos povos indígenas na Constituição Brasileira de 1988, se apresentou na Bienal, realmente, como um ancião que detém a sabedoria dos anos vividos e disposto a compartilhá-la com os mais novos.
“O nosso modo de estar na Terra poderia ser um pouco mais colado na terra. Ela poderia ser nossa mestra, o Paulo Freire falava de uma educação da terra, mas parece que ele falava sozinho, não conseguiu contagiar outras pessoas”, comentou, aproveitando o patrono da educação brasileira para deixar uma mensagem mais direta de incentivo.
“Fazer uma crítica pode ser a primeira ação de esperançar, de propor uma transformação crítica. Então pensar outro mundo é um ato de esperança radical. Pensar qual a responsabilidade que cada um de nós pode assumir na sua casa, na sua comunidade, para fazer alguma coisa diferente. E aí isso vai se juntando e cria uma contracorrente”, arrematou Krenak, sendo aplaudido vigorosamente de pé pelo público no Teatro Gustavo Leite.