Em entrevista, maior nome da pesquisa acadêmica sobre o cangaço explica porque o interesse sobre os cangaceiros segue se renovando geração após geração
Mariana Lima – jornalista
O cangaço é uma tradição brasileira de insurgência rural, coletiva, armada e metarracial. O cangaceiro é o protagonista do épico popular brasileiro. É com essa explicação direta e aparentemente simples que o pesquisador, historiador e autor recifense Frederico Pernambucano de Mello sintetiza o movimento que atravessou os rincões do sertão nordestino há alguns séculos, marcando seu lugar para sempre como um fenômeno histórico, social e cultural da região.
Presente em Maceió para a 10ª Bienal Internacional do Livro de Alagoas, na qual participou de palestras sobre a literatura e a estética do cangaço, Frederico discorreu sobre a constante renovação do interesse do público nesses personagens, como eles foram imortalizados na cultura popular e até sobre os herdeiros do título, os bandos hoje conhecidos como Cangaço Novo, que aterrorizam cidades por todo o país em assaltos a banco e explosão de caixas eletrônicos.
Confira o que Frederico tem a compartilhar – conteúdo que, inclusive, ele foi contratado para explicar aos roteiristas, produtores e atores do Globoplay e, em breve, vai compartilhar com a Disney, pelo streaming Star+, para embasar produções sobre o cangaço que devem chegar às telas nos próximos anos. Guerreiros do Sol, série de 45 capítulos do streaming global com status de novela, carrega o mesmo nome de um de seus livros mais famosos.
Mariana Lima – O cangaço sempre despertou atenções e parece que de tempos em tempos, ele se reinventa. Era fora da lei, um anti–herói, o justiceiro, há pouco tempo por causa do Big Brother veio o “sangue de Maria Bonita” que virou meme entre os mais jovens. Como o senhor vê essa mudança constante da visão do público sobre o cangaço?
Frederico Pernambucano de Mello – Houve uma fase há trinta, quarenta anos, em que o mundo acadêmico estava dominado pela bibliografia marxista e, por essa visão, haveria a seguinte estrutura de luta de classe criada: o coronel sertanejo como opressor e o cangaceiro como oprimido. Então, isso dava um discurso muito elegante ao cangaceiro e eu como afilhado de fogueira – não sei se conhece essa instituição sertaneja – afilhado de fogueira do senhor Miguel Feitosa Lima, que era o cangaceiro Medalha, que andou com Lampião nos anos 1920, eu ia visitar meu padrinho e contava isso a ele:
– Medalha, o senhor era perseguido pelos coronéis?
– Não, como assim?
– Então, o coronel perseguindo os senhores, os senhores fugindo dos coronéis?
– Não, Lampião era doido pelos coronéis! Nós vivíamos de coronel em coronel.
Aí eu voltei para o Recife, eu já estava engajado na Fundação Joaquim Nabuco trabalhando com o grande sociólogo Gilberto Freyre – que chegou a prefaciar um livro meu, Guerreiros do Sol – e perguntei:
– Doutor Gilberto, como é? Eu fico com o que a academia preceitua ou com a testemunha preceitua?
– Fique com a sua fonte, despreze tudo o mais.
Então o meu livro Guerreiros do Sol, cuja primeira edição foi de 1985, já desmontava esse falso discurso da luta de classes. O cangaceiro na verdade é o seguinte: o cangaço é uma tradição brasileira de insurgência rural, coletiva, armada e metarracial.
ML – Metarracial? Como assim?
FPM – Lampião era um caboclo, Zé Baiano era um negro, Zé Sereno era um tipo de negroide chamado Cabo Verde, Candeeiro o que eles chamavam no sertão de sarará. Corisco era loiro, dos olhos claros e cabelo liso, ou como se dizia no sertão antes do politicamente correto, tinha o cabelo bom, um cabelo grande como se fosse de uma moça e tal. Todas essas figuras ascenderam às funções de chefia do grupo de cangaço. Então metarracial. E, no mais, é uma tradição brasileira que remonta aos primórdios da colonização em que o colonizador, chegando ao Brasil, verificou nos nossos índios e mandou dizer à metrópole: “eles vivem sem lei nem rei e são felizes”. Nesse nervo que vai se entroncar os levantes indígenas que perpassam toda nossa história, os quilombos negros que também perpassam toda a nossa história, e as revoltas sociais, a maior das quais foi a Guerra de Canudos, de 1897.
ML – O senhor falou de insurreição rural e no Nordeste tivemos muitas insurreições, em especial no período da Regência até a maioridade de D. Pedro II. O cangaço vem também aproveitando um pouco dessa “mão de obra” que foi treinada para essas revoltas ou uma coisa não tem ligação com a outra?
FPM – Não, evidentemente que cabia ao Estado, como poder organizado, combater essas insurgências, esse irredentismo do qual o cangaço fez parte. Então era natural que os conflitos surgissem e com o mar de sangue que ocorreu… Lampião foi o maior dos cangaceiros, mas não o único, pois o cangaço data de vários séculos, há registros do cangaço nas primeiras documentações feitas já no século XVIII, no século XIX. E essas insurgências sempre tinham uma justificativa, uma motivação, mas, ao Estado, cabia, realmente, reprimir.
ML – A gente passeava pela Bienal e via o tema cangaço em diversos livros, Maria Bonita e Lampião, Corisco e Dadá, livros de pesquisa e também ficção. Nós não tivemos um período medieval no Brasil, com as histórias de cavaleiros, então de certa forma, aqui no Nordeste, o cangaceiro entra no espaço das lutas de “capa e espada”? É ele o nosso cavaleiro?
FPM – É, aliás Ariano Suassuna aproveita o cangaceiro em O Auto da Compadecida porque é um auto medieval teatral. Então, ele aproveita, realmente, a figura do cangaceiro, que é o protagonista do épico popular brasileiro. É isso que, no cangaço, fascina. O épico popular brasileiro e ele está transcendendo da literatura escrita para a televisão. Eu acabo de prestar uma consultoria para o Globoplay, para uma novela que já está na metade das gravações e vai estrear no começo de 2024 chamada Guerreiros do Sol. Eles me pediram licença para colocar o título do meu livro porque disseram – e eu acho que estão certíssimos – “se eu colocar Guerreiros do Bem, eu estou tomando partido, Guerreiros do Mal, estou tomando partido. Guerreiros do Sol não, cabe ao espectador adjetivar”. E assim foi feito, a série vem aí, muito boa.
Acabo de ser solicitado agora pela Disney+, devo fazer também uma consultoria para eles, estamos discutindo os termos do contrato, que é para a história de Maria Bonita. Mas a Globo foi mais sabida porque colocou personagens fictícios, isso elimina certos riscos de processos com base nos chamados direitos da personalidade. No caso da história de Maria Bonita, a Disney vai correr certos riscos, mas cabe ao consultor tirar as espoletas que possam causar maiores problemas, mas sem conseguir cauterizar completamente o perigo. Tem descendentes [que podem contestar], a filha dela, Expedita, está viva, com 91 anos.
ML – Indo um pouco mais à questão da Maria Bonita, o feminismo neste século XXI quer resgatar alguns ícones e se apega muito ao fato de que Maria Bonita largou a vida que tinha e foi com Lampião. Por mais que se apresentem contrapontos de que o feminismo como temos hoje não existia naquela época e que as mulheres no cangaço faziam as outras seguirem o código de conduta machista e patriarcal, como o senhor vê essa tentativa de resgate da imagem que o feminismo faz, as meninas nas redes sociais usando o “sangue de Maria Bonita” do BBB, tentando pegar essas mulheres do cangaço de inspiração?
FPM – Maria Bonita tem algumas particularidades muito interessantes. Quase todas as mulheres – e eu conheci várias delas, fui amigo de Dadá, mulher de Corisco, cangaceira, fui amigo de Sila de Zé Sereno, fui amigo de Adília de Canário, e várias outras mulheres que eu ainda alcancei vivas e ativas, podendo conversar e explicar como como tinha sido aquela vida. Quase todas elas usavam um artifício psicológico que eu estudo no meu livro Guerreiros do Sol, que é o chamado escudo ético. Quer dizer, por exemplo, Cila: ela diz “eu fui raptada por Zé Sereno. Eu tinha família, tinha tudo, fui raptada e fui a pulso para o cangaço”. Dadá também dizia que tinha ido a pulso para o cangaço. Maria Bonita foi uma rara exceção. Ela, falando com o cinegrafista que acompanhou o bando de Lampião, o Benjamin Abrahão, ele diz “conversei com ela, ela me disse que foi acompanhar Lampião de livre e espontânea vontade”. Então, ela tem uma particularidade de ter assumido aquela condição de modo consciente e voluntário, de maneira que o “sangue de Maria Bonita” realmente apela para essa espontaneidade da adesão, da ausência de coação, da ausência de obrigatoriedade alegada pelas outras mulheres do cangaço.
ML – Nós temos hoje em dia a questão do Novo Cangaço. Enquanto tem gente que usa esses crimes para dizer que os cangaceiros daquele tempo realmente eram ladrões, também encontramos pessoas que não gostam que se chame os bandidos de hoje de cangaceiros, pois ainda defendem a ideia do anti–herói. Como o senhor vê a questão do nome Novo Cangaço para esses bandidos?
FPM – No Sertão vicejou uma cultura da violência. Essa violência foi inoculada no cangaço desde os séculos iniciais dessa colonização quando foi necessário que os homens dominassem as armas brancas e armas de fogo para debelar as tribos indígenas que impediam o assentamento dos currais de gado e a criação da sociedade pecuária que caracteriza todo o semiárido nordestino. Então, em razão disso, o valor da coragem, o elogio da coragem esteve sempre presente. No cangaço não foi diferente. Havia também aquela ideia da necessidade, da coragem, da valentia, do adestramento nas armas, não é? Foi o que aconteceu.
ML – E…?
FPM – O velho cangaço, digamos assim, o cangaço autêntico, era um complexo que celebrava a valentia daquele homem. Por quê? Porque eles tinham uma visão de que era importante cumprir aquele papel e isso fez com que o cangaceiro tivesse uma aceitação social tão grande e tivesse o seu nome imortalizado – isso agora é um ponto muito importante – pela poesia de gesta. O que é a poesia de gesta? É a poesia que vai imortalizar os chefes de cangaço através da cantoria de viola, no caso do verbal, e dos folhetos de cordel no caso da prensa escrita, feita com matrizes de xilogravuras. Então, por exemplo, o cangaceiro Antônio Silvino, que é precursor de Lampião, ele é imortalizado na poesia de Leandro Gomes de Barros e de Francisco das Chagas Batista, dois menestréis geniais. Já o tempo de Lampião é caracterizado mais pela pela glosa dos seus feitos pelo poeta João Martins de Athayde, que tinha uma impressora no Recife, na Rua do Rangel, e gerava aqueles folhetos que eram embarcados de manhã cedo no trem para serem vendidos no sertão.
Então, o Novo Cangaço não tem esse fascínio, não tem essa imortalização, não tem essa glamourização pela poesia de gesta. É apenas banditismo, é apenas crime. Futuramente pode até surgir uma poesia, uma coisa, alguma novela que possa até explorar esse novo cangaço, mas a gente sabe que o Novo Cangaço é mais uma organização criminosa de grupos atuantes hoje é não somente no Nordeste, não somente no Brasil, mas em toda a América Latina, nós vimos agora esse assassinato no Equador [morte de Fernando Villavicencio, candidato à presidência do Equador, após um evento de campanha]. Aquilo é luta de gangues, droga e tal, no cangaço não tinha isso.